A instalação de parques eólicos tem demonstrado que o conceito de “energia limpa”, é, no mínimo, contestável. É o que mostramos nesta quarta reportagem da série sobre a instalação de parques eólicos no Brasil, especialmente no Nordeste. São diversas denúncias de perda de plantações, mortes de animais e prejuízos à saúde para as pessoas que convivem perto dessas torres de energia.
O Rio Grande do Norte deve receber em torno de 500 parques eólicos que pelo tamanho do estado terá um impacto imensurável do ponto de vista turístico e estrutural e ambiental. Além desses parques estão planejadas a construção de torres de energia offshore (no mar) ao longo da margem Equatorial, o que vai afetar ainda mais a pesca e, consequentemente, a sobrevivência dos pescadores artesanais.
Somente em Serra de Santana, na região de Seridó (RN), foram desativadas 1.920 propriedades rurais para a instalação das torres, denuncia o Movimento dos Atingidos pelas Renováveis (MAR).
Além do fim da produção de alimentos, os agricultores familiares lamentam que o barulho e o vento durante 24 horas têm provocado o aborto em animais de criação, como ovelhas e caprinos, a extinção de diversos tipos de abelhas, essenciais para a polinização e sobrevivência da humanidade, e o sumiço de pássaros silvestres, como as corujas.
Toda essa tragédia vem sendo acompanhada e debatida pelo MAR, movimento de articulação horizontal, sem hierarquia. Maria das Neves Valentim, a Nevinha, uma das coordenadoras do MAR explica que existe uma formação continuada e multiplicadora sobre esses temas da questão das mudanças climáticas, como elas estão nos afetando.
“Nós fomos ‘atropelados’ pelo grito das pessoas atingidas pelas energias, especialmente as eólicas. Antes dessas denúncias a gente achava que era uma maravilha, o que não é”, diz Nevinha.
A coordenadora do MAR diz ainda que o movimento tem alertado as comunidades, especialmente os assentados, da reforma agrária sobre os riscos que correm ao assinar contratos de arrendamento de suas terras com as empresas que instalam os parques eólicos.
“Os contratos, nós sabemos, são injustos e desiguais. O agricultor tem a obrigação de entregar a terra, porque em caso de arrependimento as multas são impagáveis. São contratos de 30, 40 anos, com consequências muito sérias. Nas comunidades o grito é a questão da insegurança alimentar e isso é muito sério”, desabafa.
Com o trabalho de articulação o MAR, da CUT e de outras entidades, se tem conseguido fazer com que as pessoas de comunidades, que estão sendo assediadas pelas empresas para que arrendem suas terras, não assinem os contratos.
“Esse é um movimento que a gente está fazendo de alerta para que as pessoas não assinem os contratos da forma como as outras comunidades foram assinando e que hoje estão arrependidas e sem ter muito o que fazer”, diz Nevinha.
Falta mais diálogo com os governos
Segundo Nevinha, os diálogos com o governo estadual do Rio Grande do Norte têm sido frustrantes e para serem ouvidos foi preciso escrever uma nota de repúdio. Depois de articulações, tanto o movimento como outras entidades foram recebidos pela Secretaria de Gabinete Civil do estado que propôs a criação de um grupo de trabalho paritário para buscar saídas para os impactos negativos provocados pelas eólicas.
“Chegamos a ficar esperançosos, mas três meses depois, nos disseram que não havia apoio político para implementar o grupo de trabalho. Enfim morreu, e ninguém falou mais nada. E logo em seguida, o governo do estado publica o ato de criação do Conselho Estadual de Política Energética com uma composição que exclui totalmente o segmento dos trabalhadores”, critica.
Esse conselho é constituído por representantes da Federação das Indústrias do Rio Grande do Norte, a Federação da Agricultura do estado, mas não inclui a Federação dos Trabalhadores na Agricultura.
“Só tem o segmento patronal, as universidades que é aquele negócio do notório saber, mas nenhum representante do trabalhador”, conta.
Projeto de Lei
A deputada estadual Maria Isolda Dantas de Moura (PT-RN), diz que os movimentos sociais, como o Movimento dos Sem Terra (MST), o MAR e outros, além de coletivos de juventude estão se articulando para fazer frente às empresas de energia renováveis e uma das batalhas é no legislativo estadual.
“Nós realizamos um seminário, com a participação da CUT, em que levantamos as legislações que já existiam acerca desse tema. E nós fizemos um apanhado sobre uma lei em Santa Catarina e outra no Piauí Então, nós estamos em processo de elaboração de um projeto de lei”, conta a deputada.
Segundo Maria Isolda, a ideia é apresentar uma proposta nos próximos dias de alterar a composição do Conselho de Segurança Energética do estado para incluir a participação da sociedade civil.
Dentro do projeto deve ser colocada a necessidade de uma distância mínima entre as torres, que não tem nenhum regramento no país. O ideal, dizem especialistas que elas fiquem pelo menos a dois quilômetros de distância, mas aqui as torres são instaladas a pouco mais de 120 metros, prejudicando proprietários que não arredaram suas terras para as eólicas.
“Uma outra coisa é sobre aonde vão se colocar as torres, não só em relação a casa das pessoas, mas em relação se determinada área é produtiva, se está degradada ou não; o distanciamento dessa área de fontes de recursos hídricos. É todo um capítulo que vai tratar dessa questão”, conta a deputada.
As compensações ambientais e sociais também devem estar no escopo do projeto de lei porque as empresas chegam nos lugares prometendo tudo pra comunidade e isso não acontece.
“O tráfego dentro de uma propriedade rural é tão grande que racham casas e mexem com a saúde da população, não só do ponto de vista mental, mas os causados pela poeira e resíduos das turbinas”, diz.
Tragédia social
Outros fatores importantes que devem estar no projeto são os empregos de baixa qualidade gerados e temporários fazendo com que trabalhadores fiquem pouco tempo nas cidades e, muitas vezes geram filhos, mas não cumprem os deveres paternais, abandonando crianças. A gravidade da situação é tão grande que essas crianças passaram a ser identificadas como “filhos do vento”, uma alusão à produção de energia pelo vento das eólicas.
“O projeto é muito complexo e estamos dialogando intensamente com os movimentos sociais porque nós não podemos chegar na Assembleia com um PL sem um nível de articulação política para sermos derrotados”, avalia.
A deputada diz que é preciso que a discussão seja levada também ao Consórcio Nordeste porque se os demais estados atingidos pelas eólicas não participarem em nível regional, o Rio Grande do Norte não terá condições de enfrentar sozinho o poder das empresas transacionais
Pedido de socorro
Segundo a coordenadora do MAR, depois de todas as denúncias, o presidente Lula, antes de sua posse, anunciou uma nova política energética, “achando que aqui é uma coisa maravilhosa e a gente vendo cada comunidade tentando ser escutada, gritando, sofrendo demais porque as pessoas próximas a esses parques estão adoecendo”.
“Antes de tomar posse, Lula falou que para o desenvolvimento não precisa derrubar nenhuma árvore, se referindo à Amazônia, mas acho que presidente Lula não está sabendo o que está acontecendo”, avalia.
De acordo com ela, o resultado de uma mesa de diálogo promovida junto à Secretaria Geral da Presidência da República, também foi frustrante, sem respostas e ações concretas até agora.
Já a deputada Maria Isolda diz que a reunião, que ocorreu juntamente com representantes dos ministérios do Meio Ambiente e Direitos Humanos, vai resultar num relatório a ser apresentado ao núcleo do governo federal para que o Executivo possa minimamente barrar essa ofensiva das empresas transacionais sobre o território brasileiro.
“É preciso providências do ponto de vista da legislação por parte do Executivo porque temos um Congresso Nacional muito lento”, afirma a deputada estadual.
Por outro lado, a coordenadora do MAR diz ainda que existe articulações para a criação de movimentos abrangendo os estados do Piauí, Bahia, Maranhão, Ceará, Paraíba Pernambuco, Alagoas e Sergipe, estados que além do Rio Grande do Norte estão sofrendo também com a instalação de eólicas, embora em menor quantidade. Só o Rio Grande do Norte produz mais de cinco vezes energia do que consume.
Nevinha alerta ainda que a situação pode piorar ainda mais com a criação dos Portos de Hidrogênio Verde para produção de energia ao hemisfério norte que precisa de muita energia e não pode ser energia fóssil. Segundo ela, duas cidades podem sumir para a construção de um poço de hidrogênio verde.
“Ninguém sabe, por exemplo, onde vai ser colocado o lixo dessa construção. Tem parques eólicos aqui com mais de 10 anos, que daqui há 20 anos precisarão ser desativados, ninguém tem solução pra isso. Aí nós temos impacto de toda a ordem desde os parques que ficam na rota de aves migratórias, a agricultura familiar sendo desmontada, a pesca artesanal ameaçada com o offshore. É uma tragédia atrás da outra tragédia com mais tragédias anunciadas”, conclui.
O Nordeste está sendo devastado literalmente pra produzir energias eólica e solar em larguíssima escala. A gente precisa fazer a descarbonização, mas a forma como esse modelo chegou, ele se insere naquele velhíssimo extrativismo colonial que a gente conhece. Então, o Brasil agora é o grande fornecedor de energia limpa, entre aspas, para o hemisfério norte- Maria das Neves Valentim (Nevinha)