Há vários estudos sobre os grupos indígenas que se fixaram nas planícies do atual norte fluminense. Ondemar F. Dias Junior deu notícia sobre o sítio arqueológico do Caju em Campos dos Goytacazes em “Considerações iniciais sobre o terceiro ano de pesquisas no Estado do Rio de Janeiro” (Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas 3-Resultados Preliminares do Terceiro Ano (1967-1968). Publicações Avulsas nº 13. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 1969). Com Jandira Neto, ele resumiu suas pesquisas em “ Pesquisas arqueológicas no sítio do Caju” (Campos dos Goytacazes: Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima, 2014). Sobre esse sítio, Lilia Cheuiche Machado, Glaucia Malerba Sene e Laura P. Ribeiro Silva foram além da descrição da cultura material e se valeram dela para uma tentativa de interpretação da cultura imaterial do povo que ali viveu em “Estudo preliminar dos ritos funerários do sítio do Caju, RJ” (Revista de Arqueologia v. 8, 1. São Paulo: Sociedade de Arqueologia Brasileira, 1994). Raimundo Oswaldo Heredia, Tania Andrade Lima e Regina Coeli Pinheiro estudaram um sítio arqueológico na margem esquerda do rio Macaé que resultou no artigo “Pesquisas arqueológicas no norte fluminense: o sítio de Jurubatiba” (Arquivos do Museu de História Natural vol. VI-VII. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 1981-1982). Uma das mais importantes pesquisas foi empreendi por Tania Andrade Lima e Regina Coeli Pinheiro da Silva na ilha maior do arquipélago de Santana, em frente à foz do rio Macaé, resultando no artigo “Zoo-arqueologia: alguns resultados para a pré-história da Ilha de Santana” (Revista de Arqueologia 2 (2). Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, jul/dez de 1984). O povo que ali viveu antes da chegada dos europeus permite-nos discutir o conceito de paleolítico na América. Cabe ainda mencionar o trabalho “Notícias preliminares sobre o programa arqueológico do Norte Fluminense” de Alfredo A. C. Mendonça de Souza, Cesar Augusto Lotufo, Joel Coelho de Souza e Murilo Osmar Coelho de Souza (Munda nº15. Coimbra: Grupo de Arqueologia e Arte do Centro, 1988).
Em grande parte, os sítios arqueológicos no continente foram descobertos pelo processo de urbanização e não por pesquisadores. Estes foram chamados rapidamente para empreenderem pesquisas de salvamento. Ou seja, para retirar o material arqueológico não destruído por obras.
A ocupação do território correspondente às baixadas por povos nativos obedeceu aos avanços (progradação) e recuos da área continental (retrogradação), assim como avanços (transgressão) e recuos (regressão) do nível do mar. Há 15 mil anos antes do presente, a linha costeira em todo o planeta era mais avançada que atualmente porque o nível do mar era mais baixo. Em grande volume, as águas da Terra estavam encerradas em geleiras, dominantes no hemisfério norte.
No atual norte fluminense, a área continental era maior que a atual. O arquipélago de Santana integrava essa área. Portanto, não eram ilhas. Vários grupos indígenas ocupavam então esse vasto continente. A partir de 11.700 anos antes do presente, a temperatura média global começou a elevar-se naturalmente. Entre 7.000 e 5.100 anos antes do presente, o mar começou a transgredir sobre a área continental baixa, talvez seguindo o vale do Paraíba do Sul, e esbarrou nos contrafortes da Serra do Mar, na altura do atual Itereré. Na restinga de Jurubatiba, o terreno de areia era alto. A transgressão não o invadiu, mas formou uma área linear arenosa, dando origem às lagoas arredondadas de grande restinga. Posteriormente, ela afundou, processo conhecido como nome de subsidência. Os grupos indígenas foram abandonando as terras invadidas pelo mar e se deslocando para as terras mais altas.
A partir de 5.100 anos antes do presente, o mar começou a regredir. O rio Paraíba do Sul, o maior entre eles, transportou sedimentos da zona serrana e dos tabuleiros, formando a grande planície aluvial do Paraíba do Sul–sistema Ururaí e a planície menor do vale do Macaé (Severina). A de Quissamã/Carapebus já existia. Novamente, os povos indígenas foram acompanhando o avanço continental. A linha de costa se estabilizou (sempre de forma provisória) por volta de 2.500 anos antes do presente. A formações rochosas de Santana, de continente passaram a península e a arquipélago com a elevação do nível do mar e permanecendo na condição de arquipélago com o descenso do mar.
Há 1.260 anos antes do presente, com margem de erro de cerca de 330 anos, ou seja, no século XI da era cristã, um grupo indígena instalou-se na ilha maior do Arquipélago de Santana. Havia nela água doce em abundância. Ainda no século XVI, navios europeus ancoravam ao seu redor para abastecerem-se de água sem correr o risco de ataques indígenas na foz do rio Macaé, como informam Jean de Léry e Gabriel Soares de Sousa (LÉRY, Jean de. História de uma viagem à terra do Brasil. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1926 e SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado descritivo do Brasil em 1587. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938).
Além de água, esse povo encontrou alimento em abundância. Sua atividade principal era a pesca. Até o venenosíssimo baiacu era preparado de modo a se tornar comestível. Mas esse grupo também complementava a pesca com a coleta de equinodermos, moluscos, crustáceos e outros invertebrados, e também com a caça de quelônios, aves e mamíferos. As aves transformaram a ilha num ninhal. Além de sua carne, os habitantes da ilha alimentavam-se também de seus ovos. Caçavam igualmente pequenos mamíferos que habitavam a ilha e o continente, eventualmente visitado por eles. O povo que habitou a ilha desconhecia a cerâmica, usando como recipientes carapaças de moluscos e cascos de tartaruga.
Podemos considerar seu modo de vida como paleolítico, já que não havia agricultura nem cerâmica. Mas a fartura de alimentos dispensava o nomadismo, como não acontecia com os grupos paleolíticos da Eurásia. A própria ilha inibia os deslocamentos territoriais, havendo, no máximo, visitas eventuais ao continente. Esse grupo pode ilustrar o modelo de paleolítico na América do Sul.
Examinando os sítios do Caju e da restinga de Jurubatiba, concluiremos que havia assentamentos. No sítio de Santana também havia. Contudo, no Caju e em Jurubatiba, encontraremos um elemento ausente em Santana: a cerâmica. Esse elemento seria insuficiente para caracterizar os dois grupos como neolíticos, embora a agricultura (conhecida, mas não praticada), o pastoreio, a tecelagem, o polimento da pedra e a metalurgia estivessem ausentes.
A agricultura era conhecida, sobretudo a da mandioca, mas sofreu inibição diante dos fartos recursos fornecidos pela natureza, como frutos, moluscos, crustáceos, peixes, aves e mamíferos. O Roteiro dos Sete Capitães registra essa fartura com admiração (SOFFIATI, Arthur. Os mais antigos documentos europeus sobre a capitania de São Tomé. Campos dos Goytacazes: Essentia, 2023). Por que investir na agricultura se a natureza era pródiga? Quanto ao pastoreio, além de não existirem animais facilmente domesticáveis nas baixadas, a coleta, a pesca e a caça compensavam com vantagem a domesticação e a criação. A tecelagem era substituída por penas tomadas de aves, além de ser desnecessária como proteção contra o frio em clima tropical.
O polimento da pedra não era comum nas planícies norte-fluminenses por uma razão muito simples: a inexistência de pedra como matéria-prima. Contudo, ela existia em abundância na zona serrana e era polida para vários usos. Observe-se que era um polimento de qualidade. A metalurgia fica para os povos considerados civilizados, como os andinos, os centro-americanos e os habitantes da meseta mexicana.
Assim, sugere-se a construção de modelos adequados à América do Sul. Comportamentos paleolíticos, que dispensam o nomadismo, e neolíticos, que não necessariamente aliam cerâmica à agricultura nem adotam um modo de vida plenamente sedentário, como os modelos euroasiáticos.
Sugere-se também uma reflexão sobre os conceitos de história e pré-história. Sistemas de escrita ainda continuam sendo utilizados para marcar o fim da pré-história e o começo da história, como se eles não fossem produto da dinâmica interna das sociedades. Nos grupos paleolíticos não havia escrita sistematizada, mas a cultura material não deixa de ser uma forma de escrita que pode ser lida por especialistas. Assim, existe um contínuo descontinuado nas sociedades que derivam de sociedades paleolíticas e neolíticas, criando sistemas de escrita. A sugestão é nomear as sociedades de acordo com sua economia, organização interna e tecnologia. Exemplo: sociedades paleolíticas, sociedades neolíticas e sociedades civilizadas, em lugar de pré-história e história.
Cabe ainda observar que a história não começa na civilização chinesa e hinduísta quando a civilização ocidental as abalroa. Ela passa a ser contada de forma diferente. A China e a Índia inserem o domínio ocidental como uma fase da sua história, apesar de continuar a denominar as sociedades neolíticas e paleolíticas que as antecedem de pré-história. Na América, este problema se acentua. Por mais que se releve a história asteca, maia e inca, a história verdadeira vem embarcada nas caravelas de Cristóvão Colombo. Todos os povos ágrafos são jogados para os porões da pré-história escancaradamente. Os povos paleolíticos e neolíticos da América tinham história. O ocidente, com sua expansão, também as abalroa. A proposta é considerar o ocidente como um acréscimo a histórias existentes, não jogá-las num saco.
Cabe ainda a observação de que os sítios arqueológicos da região (poderíamos incluir todo o Brasil) sofrem a grande ameaça da agropecuária e da urbanização. Tratores e arados revolvem a terra para o plantio, destruindo sítios arqueológicos, como aconteceu em Donana, Campos. O pisoteio do gado também é destruidor. Mas a grande ameaça são as cidades. O maior ritmo de urbanização parece ser o de Macaé depois da instalação da Petrobrás. Lá, várias pesquisas de salvamento já foram feitas, salvando muito pouco. Toda a restinga entre o rio Macaé e a lagoa de Jurubatiba passou por um intenso processo de urbanização depois que a Petrobras se instalou na cidade. Não sabemos quantos sítios arqueológicos foram soterrados por prédios e asfalto. Agora, novos empreendimentos como um novo porto (Tepor) e termoelétricas trazem grande ameaça aos sítios que possivelmente existem na restinga e ao sítio da ilha de Santana. É momento de o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional entrar em cena e exigir a proteção desses sítios.
Arquipélago de Santana