Desde o paleolítico, a Península Ibérica é povoada. Por ela, passaram os celtíberos, os romanos, os mouros, os judeus até chegarmos aos habitantes atuais. Agora, ondas migratórias incluem africanos, asiáticos e americanos. É de se esperar que a paisagem natural original tenha se transformado ao longo dos séculos. No entanto, ela passa por mudanças perigosas.
Visitei Portugal e Espanha em 2019. Em Portugal, viajamos para o norte do rio Tejo até Santiago de Compostela, na Galícia, Espanha. Dediquei atenção aos rios que desembocam no mar por se tratarem de rios principais de bacias. Pesquisei-os e
concluí que não apresentam estado saudável, embora possam parecer sãos. Escrevi também sobre os rios ao sul do Tejo. Eu entendia, então, que se conhece o estado geral de uma bacia pela foz do seu rio principal. Já não penso assim, pois a foz pode aparentar um estado que não se estende à toda bacia.
Na segunda visita à Península, em junho de 2024, planejei conhecer diretamente os rios Sado, Mira, Seixe, Alzejur, Arade e Guadiana. Por escassez de tempo, não pude visitar os desaguadouros do Mira, do Seixe e do Alzejur. Na minha viagem de um mês, seria impossível conhecer afluentes. Em Miranda do Douro, encontrei novamente o rio Douro, agora no seu alto curso. Em Coimbra e em Figueira da Foz, voltei a ter contato com o rio Mondego. Eu pretendia também um contato com o rio Guadalquivir, em Sevilha, mas tive de retirar essa cidade do meu roteiro por falta de tempo. Mesmo assim, conheci um trecho dele em Badajoz. Nas ilhas da Madeira e de São Miguel, finalmente conheci as famosas ribeiras ao vivo.
Passei por vários pequenos rios na viagem. A um simples exame, percebi que a maioria estava seco ou se escondia sob a vegetação estimulada pela umidade do leito. Enfim, a ocidentalização, conceito que uso para explicar as transformações promovidas pela concepção europeia de natureza, foi também praticada – e primeiramente – nos rios europeus. Por mais que trechos deles sejam limpos e belos, escondem-se problemas em seus leitos, como desmatamento de margens, assoreamento, poluição, barramentos, uso excessivo de suas águas para irrigação e abastecimento público. O Tejo, maior rio da Península, é pouco menor que o Paraíba do Sul. Enfim, os rios são superexplorados e mostram sinais de cansaço.
Quase todos os estuários, trecho do rio em que a água doce se encontra com a água salgada, estão prolongados mar adentro por espigões de pedra, sendo o caso mais problemático o do rio Mondego, que merecerá atenção particular em outro artigo. Quem examina esses rios do alto, por meio de imagem de satélite, verifica que, quase todos, estão represados em vários pontos. Mas, para os culturalistas, as alterações promovidas nos rios significam o domínio orgulhoso do humano sobre a natureza.
Minhas observações no sul da Península confirmaram uma hipótese: a secura do deserto do Saara está avançando por seu território. Leve-se em consideração que o mar Mediterrâneo representa uma barreira líquida entre África e sul da Europa. Contudo, as mudanças climáticas estão favorecendo o avanço da aridez. A vegetação nativa original foi removida em grande parte para dar espaço à agricultura e à pecuária. Observei o cultivo de corticeiras, parreiras, oliveiras, feno, laranjeiras e outras plantas mais. Ao norte do rio Tejo, é impressionante o cultivo do eucalipto, planta que favorece os incêndios rurais e atingem povoamentos humanos.
Embora a fauna nativa tenha sido, em grande parte, expulsa pela criação de bois e de porcos, sei que o javali silvestre, o lobo, o cervo, a raposa ainda são encontrados. Só encontrei florestas densas na ilha da Madeira. É a famosa laurissilva, floresta com muitas espécies endêmicas, como o loureiro (Laurus novocanariensis), folhado (Clethra arbórea), til (Ocotea foetens), vinhático (Persea indica), massaroco e outras mais. Pela primeira vez na viagem, senti o prazer de entrar numa floresta de grande porte. As árvores são altas e com caule retilíneo. O ar muda em sua pureza. A laurissilva é protegida pela Unesco como patrimônio da humanidade. De fato, ela proporciona grande encantamento aos amantes da natureza. Mas não apenas. A pura água da Madeira provém dela. Subindo-se mais, encontra-se uma paisagem campestre nativa semelhante aos campos naturais do Brasil. Em alguns, porém, existem árvores muito antigas.
Tanto na ilha da Madeira quanto na ilha de São Miguel, tive contado físico com as famosas ribeiras. Elas são pequenos cursos d’água temporários que correm em fraturas naturais de rocha vulcânica ou escavadas pela própria água ao longo de milênios. Na Madeira, é comum as ribeiras se tornarem torrenciais com as chuvas que se precipitam nos pontos altos. O nível hídrico e a velocidade podem se tornar destrutivos, como aconteceu em 2010 na ribeira Brava. Na ilha de São Miguel e nas oito outras que formam o arquipélago dos Açores, as declividades mais baixas favorecem mais a perenidade das ribeiras e reduzem mais o risco de oscilações hídricas e de enchentes.