Na contramão do planejamento de expansão energética do país, a Eletrobras decidiu retomar seu plano de erguer um conjunto de grandes hidrelétricas na Amazônia, em área com presença comprovada de povos indígenas e que já foi, inclusive, alvo de vedação ambiental por parte do governo federal.
((o))eco apurou que a companhia encaminhou, nesta semana, um pedido formal à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), para que o órgão renove o registro e o “aceite técnico” para a construção da hidrelétrica de São Luiz do Tapajós, o maior projeto hidrelétrico do país, que teria capacidade de gerar 8.040 megawatts (MW) de energia, só inferior à potência das usinas de Belo Monte e de Tucuruí, também construídas no Pará. Seu reservatório, previsto para ser formado numa área extremamente preservada da floresta, dona de diversas unidades de conservação, teria nada menos que 1.368 km², quase o equivalente ao tamanho do município de São Paulo.
A retomada do plano hidrelétrico da empresa também inclui outros projetos polêmicos. Assim como fez com a usina do Tapajós, a companhia solicitou autorização para seguir adiante com os estudos da usina Jatobá, com potência estimada em 1.649 MW. Foi apresentado, ainda, requerimento para renovar os estudos das usinas de Marabá (2.160 MW) e Tabajara (400 MW).
Os pedidos preveem o prazo de 36 meses de validade para que a companhia conclua suas análises e busque o licenciamento ambiental das usinas junto ao Ibama. Como a Aneel é um órgão voltado ao setor elétrico e não entra na seara do meio ambiente, a tendência é de que a agência aprove as solicitações, como já fez com outras demandas de prorrogação entregues recentemente pela gigante do setor elétrico.
As investidas da Eletrobras, companhia que passou por um processo de privatização e que hoje tem o governo reduzido a uma fatia minoritária 46,58%, contrariam frontalmente o que está previsto no Plano Decenal de Energia (PDE), um estudo que é atualizado todos os anos pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), com o objetivo de identificar quais as necessidades de aumento de produção de energia no Brasil nos dez anos seguintes, a partir de projeções de crescimento da economia.
Plano Nacional de Energia
Desde 2017, as usinas do Tapajós estão fora das edições do plano decenal de energia, devido à sua inviabilidade ambiental. Em agosto do ano anterior, o Ibama decidiu arquivar o processo de licenciamento de São Luiz do Tapajós. Depois de analisar todo o material apresentado pela Eletrobras e as demais empresas que, por meio de um consórcio, tentavam avançar com o projeto, a então presidente do Ibama, Suely Araújo, decidiu pelo arquivamento do pedido, ao concluir que “o projeto apresentado e seu respectivo Estudo de Impacto Ambiental (EIA) não possuem o conteúdo necessário para análise da viabilidade socioambiental”, além de terem extrapolado o prazo legal previsto para apresentar os complementos que o órgão ambiental havia pedido.
Passados oito anos, portanto, esses projetos não constavam mais dos planos de expansão elétrica nacional, o qual passou a conviver, neste período, com projetos bilionários de geração eólica e solar, em complemento à geração hídrica, que continua a ser a principal do país.
Em seu pedido levado à Aneel, a Eletrobras argumenta que pretende encarar, novamente, os órgãos de anuência do licenciamento. “As ações para licenciamento demandaram também interações junto à Fundação Nacional dos Povos Indígenas – FUNAI e Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade – ICMBio, não tendo sido, até o presente momento, contudo, alcançado pleno consenso sobre o necessário ao avanço das medidas para autorização da implantação na localidade almejada”, declara a empresa.
Segundo a Eletrobras, “observada a complexidade do avanço das tratativas necessárias”, a companhia “tem examinado com cautela as ações necessárias ao almejado desenvolvimento do empreendimento”. A empresa afirma que a renovação das autorizações pelo “prazo adicional de 36 meses” vai permitir novos estudos, “até que se alcance clareza sobre a viabilidade da continuidade de sua execução à luz das dificuldades já salientadas”.
A reportagem questionou a Eletrobras sobre o motivo de ter retomado projetos que foram estudados por mais de uma década e que não se mostraram viáveis do ponto de vista ambiental. Por meio de nota, a empresa declarou que “a Eletrobras segue em busca de investimentos em fontes renováveis, que incluem projetos hidrelétricos”.
Segundo a companhia, as autorizações vão permitir que a Eletrobras “realize os estudos de viabilidade técnica”. “Como os projetos ainda estão na fase de estudos, não há nenhuma decisão tomada sobre o tema.”
Suely Araújo, que arquivou os pedidos em 2016, quando presidia o Ibama, afirmou à reportagem que o projeto da São Luiz do Tapajós não tem qualquer viabilidade. “Seus efeitos danosos sobre o meio ambiente e sobre as populações indígenas são gigantescos. Isso ficou bem claro quando o Ibama analisou o processo no qual se requeria a Licença Prévia para o empreendimento. A inconsistência técnica do projeto apresentado e respectivo Estudo de Impacto Ambiental estavam patentes”, disse.
Atual coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima, Araújo lembrou que a Funai também se manifestou, à época, pela inviabilidade do projeto, em razão de impactos irreversíveis e da necessidade de remover grupos indígenas de seus territórios tradicionais. “Minha decisão em 2016, como presidente do Ibama, respaldada pelos diretores da autarquia, foi pelo arquivamento do processo e eu não teria qualquer dúvida de fazer isso novamente”, declarou.
Em março, a Eletrobras conseguiu convencer a Aneel a renovar o prazo para estudos de outras três usinas no Rio Jamanxim, um dos principais afluentes do Tapajós. A empresa foi autorizada a seguir com os levantamentos relacionados às hidrelétricas do Jamanxim, Cachoeira do Caí e Cachoeira dos Patos, todas consideradas extremamente danosas para a preservação ambiental.
Em termos práticos, a Eletrobras converteu esses projetos em grandes centros de estudos. Pelo menos R$ 130 milhões já foram gastos em levantamentos que nunca se consumaram em empreendimentos, mas que a companhia insiste em avançar.