Joca: o dever de proteção dos animais pelo Estado e empresas privadas

A Gol suspendeu o transporte de animais no porão de suas aeronaves após a morte do cão Joca, segundo noticiou a imprensa no último dia 24 de abril.

O cão Joca e seu tutor

Joca, um golden retriever de 5 anos, morreu ao ser transportado para o destino errado e passar quase 8 horas em viagem. Seu tutor relata que o animal estava saudável e havia sido liberado pelo veterinário para o voo de 2,5 horas até Sinop (MT). Ainda de acordo com o noticiário, a companhia aérea pretende investigar o que houve de errado, fatos que também estão sob investigação da Delegacia do Meio Ambiente de Guarulhos (SP), que aguarda o laudo de necrópsia de Joca para seguimento das apurações.

A morte de animais em aeronaves de diversas companhias aéreas não é um fato recente, nem incomum, embora esses eventos tenham ganhado mais repercussão nos últimos cinco anos. Logo, a iniciativa da Gol, apesar de importante e adequada, é tardia e não se pode dizer que era um risco desconhecido da sua operação — ou da operação de qualquer outra empresa aérea.

Existem, no Brasil, segundo dados divulgados pelo Instituto Pet Brasil, 132,4 milhões de animais de estimação, dos quais mais de 50 milhões são cachorros: mais animais que crianças nos lares brasileiros.

Esses dados demonstram que os animais são parte importante do dia a dia das pessoas e que situações que envolvem o transporte de animais serão cada vez mais frequentes e não podem ser negligenciados. Por isso, vale aproveitar a janela de oportunidade para reforçar a necessidade de aprimorar a tutela jurídica dos animais de companhia.

Tutela dos animais no direito brasileiro e sua natureza jurídica

O fundamento para proteção jurídica dos animais está na vedação de tratamento cruel do artigo 225, §1º, VII da Constituição, que determina a proteção da “(…) fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade”.

A vedação ao tratamento cruel implica no reconhecimento tácito da senciência animal, na medida em que pressupõe a capacidade de sentir emoções negativas como dor, medo, ansiedade, estresse e angústia.

A senciência tem comprovação científica. Em 2016, Mejdell et al[1] conduziram uma pesquisa em que ensinaram espécimes de cavalo doméstico a usar símbolos para expressar suas preferências sobre o uso ou não de cobertores.

O experimento foi registrado em vídeo e concluiu que, em velocidades diferentes, todos os espécimes aprenderam a expressar sentimentos de conforto e desconforto térmico por meio de sinais. De igual maneira, em 2021, uma pesquisa conduzida no Instituto de Psicologia da USP [2] demonstrou que cachorros são capazes de reconhecer e interpretar emoções humanas.

Grinde [3] aponta que são sencientes os animais vertebrados [4], que possuem sistema nervoso central, na medida em que é o sistema nervoso que permite organizar comportamentos a partir de estímulos externos, inicialmente, reflexos, mas que, no decorrer do processo de evolução, levaram ao aprendizado e sentimentos.

Afirmamos que os animais possuem dupla tutela sob a legislação brasileira: são protegidos como recurso natural e em função do seu papel no equilíbrio ecológico pelo direito ambiental e como seres sencientes, de valor intrínseco, pelo direito animal contra tratamento cruel e maus-tratos.

Embora alguns autores sustentem a insuficiência do direito ambiental para tutela dos animais, Kristen Stilt [5] entende que há equivalência desses campos do direito, que estão interligados na medida em que animais humanos e não-humanos coexistem no mesmo meio ambiente.

Na seara infraconstitucional, considera-se o Decreto nº 24.645/1934 a primeira norma de proteção animal brasileira. Revogada em 1991, a norma elencava 31 atos que caracterizariam maus-tratos (provocar ferimento ou mutilação, açoite, abandono, expor a trabalho excessivo, não dar morte rápida etc.) e impunha ao infrator sanção pecuniária e pena de prisão de 2 a 15 dias.

O decreto também estabelecia que todos os animais existentes no país seriam tutelados pelo Estado e que competia ao Ministério Público representá-los em Juízo, na qualidade de substituto legal. A norma não tratava da natureza jurídica dos animais, embora, no Código Civil de 1917, vigente à época, os animais fossem considerados coisas ou bens semoventes. Posteriormente, em 1967, a Lei Federal nº 5.197 ratificou o status jurídico dos animais como propriedades pertencentes ao Estado.

Atualmente, os animais contam com o status jurídico de bens, mas há diversas iniciativas no Legislativo para torná-los sujeitos de direito. Em 7 de agosto de 2019, o Senado aprovou o Projeto de Lei nº 27/2018, que atribui aos animais natureza jurídica sui generis, classificando-os como sujeitos de direito despersonificados e garantindo-lhes tutela jurisdicional em caso de violação de seus direitos.

O projeto foi recebido na Câmara dos Deputados sob o nº 6.054/2019 em novembro do mesmo ano. Em 2021, após regular tramitação, foi retirado da pauta de votação da Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável em 8 de julho pela presidente da comissão, deputada Carla Zambelli, e encaminhado à apreciação da Comissão de de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural.

Em 1º de dezembro de 2021, a deputada apresentou o Projeto de Lei 4.249/2021, que reforça a vedação ao tratamento cruel de animais, mas sem reconhecê-los como sujeitos de direito e passa a permitir, expressamente, seu uso em manifestações culturais, além da prática da agropecuária e de pesquisa científica.

Mais recentemente, iniciativas para reconhecimento dos animais como sujeitos de direito estão sendo debatidas no âmbito do anteprojeto de reforma do Código Civil.

A adequação da legislação para atribuir aos animais certos direitos vem na esteira de entendimento já consolidado na jurisprudência, inclusive do STF [6], que já reconheceu os animais como seres sencientes de valor intrínseco.

No entanto, a adequação da legislação ainda é importante e necessária na medida em que, especialmente no caso de transporte aéreo de animais, a jurisprudência é incoerente, como se vê em ações julgadas pelo TJ-SP em que tutores não obtiveram respaldo para transportar animais com mais de 10 kg na cabine do avião sob o argumento de que, embora os animais mereçam tratamento digno, deveriam ser acomodados no compartimento de carga para evitar risco de “desconforto aos demais e à segurança do voo” [7] [8].

Notadamente, o transporte de animais no porão de aeronaves os submete a estresse e coloca em risco seu bem-estar e sua vida, de forma incompatível com os padrões mais elementares de tratamento digno.

Entendemos que, embora essas decisões estejam pautadas nos limites da regulamentação da Anac, que permite que as companhias aéreas estabeleçam livremente as hipóteses e condições para transporte de animais, o mandamento constitucional que veda a sua submissão a tratamento cruel constitui per se fundamento bastante para determinar que sejam transportados na cabine.

Dever de proteção das companhias aéreas

Embora a Anac permita que as companhias aéreas estabeleçam as próprias regras para transporte de animais, a ausência de critérios regulamentadores claros e previamente definidos pela agência reguladora não é salvo-conduto para negligenciar o seu bem-estar.

Isto porque a vedação ao tratamento cruel é mandamento contido no artigo 225 da Constituição, cujo caput atribui a todos o dever de proteção do meio ambiente e, nesse contexto, dos animais. Não se trata de uma obrigação assumida entre partes privadas, no contrato de transporte aéreo, mas de matéria de interesse difuso.

Advogada Letícia Yumi Marques

Dessa maneira, entendemos que, ainda que a regulamentação da Anac deixe a desejar, não haveria fundamento legal para eximir as companhias aéreas da obrigação de implementar, na sua operação, sob a ótica do “princípio do poluidor-pagador”, medidas para assegurar o bem-estar dos animais transportados, como, por exemplo: suporte médico-veterinário, inclusive de emergência; treinamento de comissários e empregados em solo em protocolos operacionais específicos para o seu transporte em cabine ou no poerão da aeronave; acomodações compatíveis com porte dos animais e que lhes permitam viajar em condições adequadas de higiene e conforto térmico e ambiental; sistema seguro de rastreamento e controle da localização do animal e canal de comunicação com informações claras e precisas ao tutor, dentre outras medidas indicadas por profissionais especializados.

De toda forma, na medida em que uma empresa aérea oferece o serviço de transporte de animais, deve se estruturar para integrá-lo nas suas operações. Isso implica em mapear riscos potenciais ou reais e implementar medidas para lidar com eles. Este é, de forma bem resumida, o conceito de matriz de materialidade, que direciona as ações de sustentabilidade de uma empresa, no âmbito da sua política ESG (Environment, Social & Governance).

Apesar de recentes episódios envolvendo incidentes, até fatais, com animais, as versões mais recentes disponíveis dos relatórios de sustentabilidade das principais empresas aéreas em operação comercial no Brasil não abordam a questão do transporte de animais de companhia [9].

Nesse ponto, é importante ressaltar que a elaboração de relatórios de sustentabilidade não decorrem, até o momento, de exigência legal; porém, uma vez que são publicados e utilizados pelas empresas como vantagem competitiva, tornam-se vinculantes e sujeitos às regras do Código de Defesa do Consumidor.

Assim, uma interpretação possível resultaria na exigência de incorporar a questão do transporte de animais na matriz de materialidade das companhias aéreas, em atenção ao dever do fornecedor de prestar informações claras, objetivas e ostensivas aos passageiros/consumidores.

A conclusão inescapável é a seguinte: considerar os animais como objeto não é mais suficiente para tutelar as diversas situações cotidianas que envolvem esses animais e seus tutores e tutoras. Pesquisas científicas e entendimentos jurisprudenciais consolidados dão suporte ao reconhecimento dos animais como sujeitos de direito o dever de não submetê-los a tratamento cruel.

Esse dever é oponível ao Estado, no caso, na figura da Anac, e às companhias aéreas, que devem providenciar, com urgência, medidas para assegurar o adequado transporte de animais em suas aeronaves, sem colocar suas vidas em risco.


[1] MEJDELL, Cecile M. et al. Horses can learn to use symbols to communicate their preferences. Applied Animal Behaviour Science, [s. l.], v. 184. p. 66-73, nov. 2016. DOI: https://doi.org/10.1016/j.applanim.2016.07.014. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0168159116302192. Acesso em: 25 abr. 2024.

[2] O Jornal da USP fez uma reportagem sobre a pesquisa e sua publicação em uma prestigiada revista científica internacional. Disponível em: https://jornal.usp.br/ciencias/seu-cao-reconhece-suas-emocoes-e-toma-decisoes-a-partir-disso-mostra-estudo-da-usp/ . Acesso em 25 abr. 2024.

[3] GRINDE, B. The evolutionary rationale for consciousness. Biological Theory, [s. l.], v. 7, p. 227–236, 2013. DOI: https://doi.org/10.1007/s13752-012-0061-3. Disponível em: https://link.springer.com/article/10.1007/s13752-012-0061-3. Acesso em 25 abr. 2024.

[4] Pesquisas científicas avançam no sentido de demonstrar a senciência também em animais invertebrados, como polvos (MARSHALL, Claire. Por que a primeira ‘fazenda’ de polvos do mundo está gerando polêmica. BBC News Brasil. [S. l.], 21 dez. 2021. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-59739775. Acesso em: Acesso em 25 abr. 2024.

[5] STILT, Kristen. Rights of nature, rights of animals. Harvard Law Review, Cambridge, v. 134, n. 5, p. 276-285, mar. 2021. Disponível em: https://harvardlawreview.org/2021/03/rights-of-nature-rights-of-animals/. Acesso em: 23 dez. 2021.

[6] O reconhecimento da senciência animal e seu valor intrínseco pelo STF ocorreu em 2016, no julgamento do caso “Vaquejada” – Ação Direta de Inconstitucionalidade 4983

[7] TJSP. Agravo de Instrumento 2082943-06.2024.8.26.0000. Nesse sentido: TJSP – Agravo de Instrumento 2263604-14.2023.8.26.0000; TJSP – Apelação 1008029-87.2023.8.26.0625 e outros.

[8] O TJSP tem reiteradamente deferido pedidos para transporte de animais na cabine exclusivamente nos casos em que o animal esteja comprovadamente em bom estado de saúde e adestrado e, mesmo quando de suporte emocional, a necessidade do passageiro ou passageira seja comprovada por laudo médico. Os requisitos devem ser atendidos cumulativamente e, na esteira da regulamentação da Anac, entende-se que o transporte de animais pelas companhias aéreas é facultativo. Nesse sentido: Embargos de Declaração 1021237-53.2022.8.26.0309; Agravo de Instrumento 2207338-07.2023.8.26.0000; Agravo de Instrumento 2008410-76.2024.8.26.0000 e outros.

[9] Relatório de Sustentabilidade LATAM (2023); Relatório de Sustentabilidade GOL (2022); e Relatório de Sustentabilidade Azul (2022).