Quando se fala em poluição no mar, a primeira imagem que vem à sua cabeça é de uma praia cheia de garrafas PET carregadas pela maré? Ou de tartarugas sufocadas por redes de pesca? Então saiba que você está desatualizado. A grande ameaça são partículas microscópicas de plástico. Encontradas até em fitoplânctons, elas bloqueiam a luz solar e impedem que as microalgas, base da cadeia alimentar marítima, façam fotossíntese e liberem oxigênio. A poluição plástica – que representa 80% dos resíduos sólidos em água salgada –, vem diminuindo a capacidade dos oceanos de absorver dióxido de carbono e de regular a temperatura do planeta. De acordo com uma pesquisa publicada em março por uma equipe de cientistas liderada pelo 5 Gyres Institute, que capitaneia um movimento global contra a poluição dos mares, existem mais de 170 trilhões de partículas de plástico flutuando nos oceanos do mundo.
O plástico, um dos materiais mais versáteis e úteis da idade contemporânea, começou a ser produzido em larga escala e variedade a partir do petróleo, há cerca de 90 anos. Sua fabricação depende da polimerização, um processo químico que une pequenas pecinhas formando uma longa corrente. Depois de descartado, ele se decompõe em microplásticos e estes, em nanoplásticos.
A lavagem de tecidos sintéticos, como poliéster e poliamida, e a abrasão de pneus, que contém polímeros, liberam no ambiente nanoplásticos, assim como as microesferas adicionadas a cosméticos – cuja fabricação foi proibida em 2017 na América do Norte, no Reino Unido e na União Europeia. O próprio processo de produção do plástico gera pó e microfragmentos. Em seis das mais profundas fendas oceânicas, cientistas encontraram fibras plásticas em 100% das amostras coletadas. O material é onipresente não só em produtos industriais, mas no ar, no solo, na água da chuva e, por consequência, nos animais aquáticos e em nossos corpos.
Um grupo de pesquisadores da Universidade de Newcastle, na Austrália, revisou 52 estudos e concluiu que cada pessoa ingere cerca de 5g de plástico por semana, o equivalente a um cartão de crédito – ou seja, 52 por ano. De acordo com artigos científicos publicados em períódicos médicos, a absorção de plástico – seja pela respiração, alimentação ou em contato com a pele – pode causar leucemia e outros tipos de câncer, doenças cardiovasculares, respiratórias e inflamatórias, e distúrbios neurocomportamentais. O material é um desregulador endócrino, potencial causador de problemas reprodutivos masculinos, como baixa contagem e mutações de espermatozoides. Nas mulheres, pode antecipar a puberdade.
Seguindo a tendência atual da queda de fertilidade, a contagem de esperma em homens ocidentais poderá chegar a zero em duas décadas, de acordo com a pesquisadora Shanna Swan, autora do livro Contagem Regressiva (2023). “Vinte anos é exatamente o tempo que nossos filhos podem querer se tornar pais, então para mim isso não é apenas um artigo científico”, diz o economista e cientista político belga Frederic Laloux, ex-sócio da consultoria McKinsey, no primeiro de três episódios da série The Week, de ativismo comunitário. “Quando olho para nossos filhos e não sei o que está acontecendo com seus corpos, isso me parece muito pessoal e perturbador”, completa o autor do livro Reinventando as Organizações.
Combate às causas da poluição
Tudo o que nos rodeia está contaminado com microplásticos, segundo um relatório da organização sem fins lucrativos Oceana. Entre os itens com maior quantidade passível de ser ingerida está a água engarrafada, seguida da cerveja – e do ar. As evidências dos prejuízos não impedem que sua produção continue crescendo. Se nada mudar, a previsão é de que as mais de 400 milhões de toneladas fabricadas por ano atinjam 600 milhões em 2025, conforme sinaliza o Atlas do Plástico, da Fundação Heinrich Böll. Na América Latina, o Brasil é o maior produtor (veja destaque) e o preço se beneficia dos subsídios da indústria do petróleo – que aqui representaram R$ 17 bilhões em 2021, de acordo com a Receita Federal.
Em vez de apenas combater a poluição, especialistas defendem que a ação mais efetiva é atuar em suas causas. Em outras palavras, “fechar a torneira” da produção do material. Um novo tratado da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre a poluição por plásticos está sendo elaborado desde março de 2022 por delegações de 175 países e deve ser concluído no fim de 2024. O documento segue princípios de cooperação internacional, prevenção, participação pública, controle de poluição, promoção de equidade e justiça social – os mesmos da Declaração do Rio, de 1992 – e obriga seus signatários a criarem leis e regulamentações nacionais e órgãos de supervisão, considerando todo o ciclo de vida do plástico, mas também as circunstâncias e capacidades de cada país. “Outros acordos multilaterais incluem a apresentação de relatórios, o acompanhamento dos progressos, os planos nacionais e a eficácia da aplicação das obrigações”, diz Brenda Koekkoek, gerente de programa na Secretaria do Comitê de Negociação Intergovernamental da ONU.
No esboço do tratado da ONU está a criação de uma meta global de redução, a exemplo do Acordo de Paris. Espera-se também que ele estimule o banimento de alguns plásticos de uso único, recomende incentivos de redução de impostos e metas de reúso. Nos países com os maiores índices de reciclagem, responsabilizar quem produz é de praxe. “O EPR, sigla em inglês para responsabilidade estendida do produtor, é uma regulação que garante o financiamento do custo da coleta e reciclagem, colocando mais peso para as empresas do que para os governos”, explica Thais Vojvodic, gerente de programa na iniciativa de Plásticos na Fundação Ellen MacArthur, entidade sem fins lucrativos especialista em economia circular. No Brasil, a Política Nacional de Resíduos Sólidos é de responsabilidade compartilhada. “Os municípios se encarregam da coleta e da reciclagem e as empresas apoiam as cooperativas de catadores.” Fabricantes, importadores, comerciantes e distribuidores de embalagens ou produtos envasados precisam recolher pelo menos 20% das embalagens – de qualquer material – que colocam no mercado e entregar relatórios de desempenho ao Ministério do Meio Ambiente (MMA), que não revela quantas empresas não estão em conformidade.
Uma delegação brasileira participa ativamente nas negociações do tratado da ONU e o ministério planeja um decreto para logística reversa específica de embalagens plásticas. “O país poderá ser protagonista em ações de rastreabilidade dos resíduos coletados, pois já controla as notas fiscais de tais produtos”, afirma a equipe técnica que respondeu à reportagem. O aumento de materiais recicláveis em produtos novos e a substituição de plásticos coloridos por incolores em embalagens de bebidas são questões discutidas no tratado que já foram adotadas nacionalmente. Quanto aos plásticos de uso único, vários países, como Índia, Chile e Peru já proíbem alguns deles, além da União Europeia. No Brasil, leis que restringem canudinhos e sacolas de supermercados se limitam a algumas capitais, como São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília, e muitas ainda não estão resgulamentadas e fiscalizadas.
Inovação em design e matérias primas
Criar produtos e sobretudo embalagens que não dependam ou utilizem menos plástico são soluções essenciais para reduzir os impactos ambientais e na saúde pública da fabricação e do consumo. Com o maior valor de mercado do mundo, a Apple tem capacidade de influenciar muitas empresas. Embora ainda siga a estratégia da obsolescência programada, estabeleceu dois compromissos importantes: eliminar o plástico de suas embalagens até 2025 e utilizar esse material somente se for reciclado ou de origem renovável nos produtos.
Um compromisso global assinado por quase 500 multinacionais – de fabricantes a varejistas – em 2018 tem como meta a redução de 19% do volume total de plástico virgem utilizado até 2025, porque essas empresas aumentaram suas vendas em geral. O lado positivo é que elas estão utilizando mais plástico reciclado. “Depender só da reciclagem não é suficiente”, diz Thais. “É preciso que haja inovação upstream, ou seja, na origem, e mais ligada ao design.” No site da fundação, o Guia de Inovação na Origem traz mais de cem exemplos, como xampus e lava-roupas na forma de discos ou barras em embalagens de papel e até plásticos comestíveis, feitos de alga marinha pela fabricante britânica Notpla.
Buscar novas fontes de matéria-prima tem potencial para impulsionar negócios. Uma das maiores produtoras mundiais de celulose a partir do eucalipto, a brasileira Suzano opera em 60 países. Até 2030, ambiciona colocar no mercado 10 milhões de toneladas de produtos de origem renovável para substituir plásticos e derivados do petróleo. Numa joint venture com a finlandesa Spinnova, criou a Woodspin, para produzir uma fibra têxtil com emissão zero. A inovação não utiliza produto químico danoso ou dissolvente, nem gera resíduos ou microplásticos, e usa apenas 0,5% da água necessária para a produção de algodão convencional. Inaugurada em maio deste ano a 270 quilômetros de Helsinque, a fábrica tem clientes como a Adidas e a H&M.
Entre os estilistas, a britânica Stella McCartney é referência no uso de tecidos alternativos aos sintéticos, como algodão orgânico e a viscose feita com celulose de madeira certificada. Outra prática promovida por ela, a exemplo da marca americana de itens esportivos Patagonia, é reciclar peças antigas e reparar as danificadas, aumentando a vida útil das roupas dos clientes.
Tecnologia para limpar a sujeira
Imaginar a captura de plásticos no oceano, devido à sua imensidão, parece impossível, mas a natureza facilita essa tarefa “varrendo” o lixo para os giros subtropicais. São cinco grandes áreas, no Pacífico Sul e Norte, no Atlântico Sul e Norte e no Índico, onde as correntes marítimas atuam de forma circular e os ventos são mais fracos, mantendo os materiais em grandes zonas de acúmulo. Chamadas erroneamente de “ilhas de plástico”, essas manchas imensas contêm pequenos pedaços do material, misturados a plásticos maiores e a redes de pesca. A maior delas, no Oceano Pacífico, ocupa uma área semelhante à do estado do Amazonas.
Em operação desde 2019, a instituição sem fins lucrativos The Ocean Cleanup pretende limpar 90% do plástico flutuante dos cinco oceanos até 2040. Seu sistema de limpeza funciona com duas embarcações, uma de cada lado, puxando uma longa barreira em forma de U, com rede e boias flutuantes, que captura os detritos, sugados então por uma terceira embarcação. O projeto utiliza modelagem computacional para identificar as maiores concentrações de resíduos e posicionar seus sistemas de limpeza. Com apenas três funcionando atualmente, a The Ocean Cleanup estima que sejam necessários dez sistemas para limpar somente as zonas do Pacífico. O projeto começou a ser desenhado quando seu fundador, o holandês Boyan Slat, ainda estava no Ensino Médio, em 2013.
Outras iniciativas para limpar resíduos sólidos funcionam mais próximas à costa terrestre. Fundada no Rio de Janeiro, a Ecoboat Soluções Ambientais possui 12 catamarãs com estrutura de aço construídos especificamente para capturar resíduos flutuantes em baías, canais, rios, lagoas e represas. Cada embarcação coleta até 150 toneladas de lixo por mês.
Atualmente três delas estão em operação em Maceió (AL) e outras duas em Santos (SP), contratadas pelas prefeituras. Espaços nas laterais dos catamarãs acomodam banners com marcas de empresas que patrocinam o projeto. “O ápice da nossa demanda foi a Olimpíada, em 2016. A despoluição da Baía de Guanabara era o desafio, porque as condições ambientais inviabilizariam a realização das provas de iatismo”, conta Lourenço Ravazzano, diretor de operações da Ecoboat e também velejador.
Em outros países, empresas como a Seabin têm patrocinado ações semelhantes. Fundada em 2016 por surfistas australianos, a companhia produz e administra lixeiras flutuantes. Um sistema de bombeamento da água e filtragem captura embalagens, microplásticos de até 2 mm, óleo, combustível e detergente na superfície do oceano. As primeiras seabins foram colocadas no Mar Mediterrâneo, em Maiorca, na Espanha. Hoje são mais de mil funcionando diariamente em 53 países. A meta é levar o modelo para cem cidades até 2050.
Em países em desenvolvimento, como o Brasil, o plástico que vai parar no oceano pode ter origem na precariedade da coleta e do tratamento do resíduo sólido urbano. “O lixo dificulta o bom funcionamento da rede de esgoto, obstruindo a passagem da chuva e causando enchentes, e tudo acaba no mar”, diz Édison Carlos, diretor de sustentabilidade da Aegea e presidente do Instituto Aegea, patrocinador de Um Só Planeta. No Rio de Janeiro, a empresa de saneamento Águas do Rio, que faz parte do grupo, recuperou a balneabilidade das praias do Flamengo, Botafogo e da ilha de Paquetá depois de retirar quase 2 mil toneladas de resíduos sólidos que obstruíam a passagem do esgoto no interceptor oceânico. O túnel de 9 km de extensão e 5,5 m de diâmetro recebe a maior parte do esgoto da Zona Sul e o envia para o emissário submarino de Ipanema, que o despeja em alto-mar. Foi preciso até usar britadeira para remover o lixo misturado com gordura que formava uma espécie de cola, acumulada ao longo de 52 anos de existência da infraestrutura.
Nas 700 favelas em que a Aegea atua na capital carioca e na Baixada Fluminense, o sistema de coleta de lixo é precário ou inexistente. O problema é semelhante em outras cidades brasileiras e do Sul Global. De casas sobre palafitas, por exemplo, o lixo cai ou escorre diretamente ao mar. “A pobreza é uma fonte de lixo. Normalmente as pessoas associam a pobreza à falta de educação, mas não funciona bem assim”, diz o oceanógrafo Alexander Turra, que defende diversidade, inclusão e equidade da economia do mar para combater o que chama de racismo oceânico. “Há uma questão estrutural, porque essas pessoas marginalizadas não moram em locais apropriados, são mais afetadas por catástrofes e muitas vezes, na falta de dinheiro, buscam alimento em áreas poluídas, sendo contaminadas e mais vulnerabilizadas do que já são”, completa. Turra é um dos pesquisadores brasileiros do projeto Blue Keepers, plataforma do Pacto Global da ONU para o combate à poluição crônica do oceano por resíduos sólidos, que estimou a geração de lixo plástico que não passa por coleta nos 5.570 municípios brasileiros. O total deu 3,44 milhões de toneladas por ano. O grupo concluiu também que o Rio da Prata e a Baía de Guanabara são os principais locais de entrada oceânica do lixo produzido no Brasil.
Mas, se nos países desenvolvidos os resíduos sólidos são capturados por armadilhas nos bocais de esgoto antes de chegar ao mar, ainda não existe no mundo uma estação de tratamento que consiga remover nanoplásticos dos líquidos que deságuam nos oceanos.
É esse o desafio do engenheiro alemão Roland Damann, que pesquisa sobre qualidade da água e desenvolve tecnologias ambientais para tratá-la desde os anos 1980. Em abril de 2021, ele fundou a MicroBubbles, empresa vinculada à agência federal alemã para inovação disruptiva, para testar o uso de uma nuvem de microbolhas. Elas atraem as nanopartículas, que naturalmente preferem se grudar ao ar em vez da água. Assim, os plásticos e poluentes unidos à camada externa das microbolhas sobem à superfície e são removidos da água por pequenas válvulas em um anel flutuante.
O objetivo da MicroBubbles é construir usinas móveis de grande escala capazes de purificar hectares de superfície de água por hora, alcançando uma profundidade de até 20 metros. Após um ano e meio de pesquisa em laboratório, um protótipo inserido em um lago mostrou bons resultados, removendo quase 100% dos microplásticos. O sistema também funcionou numa estação municipal de tratamento; agora faltam testes em águas abertas e correntes. A previsão é que até 2026 os experimentos sejam concluídos e o sistema esteja pronto para uso comercial, com baixo consumo de energia e sem produtos químicos. Assim como os nanoplásticos, a solução é invisível a olho nu, já que as microbolhas têm diâmetro de até 50 micrômetros, o equivalente a um terço da espessura de um fio de cabelo humano. Mas têm tudo para resolver um problema gigantesco.
A falácia do biodegradável
Dependendo do formato do plástico e de condições como temperatura e umidade, sua decomposição leva até 400 anos. Por esse motivo muita gente procura pela palavra biodegradável no rótulo, na esperança de preservar a natureza. Uma pesquisa publicada em outubro indica que “nenhum dos produtos que afirmam ser biodegradáveis vendidos nos supermercados brasileiros é, de fato, biodegradável”. Eles são oxibiodegradáveis e multiplicam mais rapidamente os microplásticos. Puro greenwashing! A conclusão é de quatro pesquisadoras e um pesquisador do Instituto do Mar, vinculado à Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) em Santos, no litoral paulista. O grupo analisou 49 produtos descartáveis, como copos, talheres, canudos, pratos e balões, identificados como “100% Ecológico”, “100% Reciclável” e “Ecológico e Biodegradável”, comprados em supermercados de quatro cidades do Sudeste.
Novo mercado: reparação da natureza
Fundada em 2016 pelos surfistas australianos Andrew Turton, ativo no circuito de corridas de iates, e Pete Ceglinski, designer industrial de produtos de plástico até perceber que “eram peças projetadas para serem jogadas fora”, a Seabin recebeu investimentos de milhares de pessoas nos últimos sete anos, em três rodadas de crowdfunding.
O modelo de negócio consistia em vender recipientes com um sistema de bombeamento e filtragem para capturar lixo e poluentes no mar, mas em 2020 passou a alugar o serviço – é necessário recolher a lixeira, retirar os resíduos e devolvê-la para a água – e vender dados referentes ao impacto ambiental positivo gerado pela limpeza. Empresas patrocinadoras se interessam pelos dados, já que cada vez mais são pressionadas a prestar contas.
Durante 2022, em Sydney, 32 seabins filtraram quase 7 bilhões de litros de água salgada e recolheram 33 toneladas de lixo marinho, a maioria de plástico e microplásticos, suficientes para encher 2.717 piscinas olímpicas. Entre os próximos passos da empresa está um novo produto de dados financeiros alinhado com o emergente mercado de Biodiversidade e Reparação da Natureza, estimado em US$ 137 bilhões só na Austrália.