Entre os estados do Amapá e do Rio de Janeiro, estende-se uma formação geológica costeira intermediária entre a zona serrana e as planícies fluviomarinhas. Ela recebe o nome de Grupo ou Série Barreiras. Popularmente, é conhecida como barreiras apenas. Onde ela confina diretamente com o mar, formam-se falésias, verdadeiros paredões sujeitos a erosão marinha. São as falésias ativas. Se, entre elas e o mar, interpõe-se a praia ou uma planície, elas se tornam inativas. A argila é predominante nelas com concreções ferruginosas. Sua idade situa-se entre 23 e 5 milhões de anos. Discute-se ainda se sua origem é continental ou marinha.
No norte fluminense, as barreiras se estendem do rio Itapemirim, no sul do Espírito Santo, até Quissamã. Esses dois blocos parece terem sido separados pelo mar, que avançou sobre barreiras em sua parte mais baixa, entre 10 e 5 mil anos. Com o recuo do mar, a partir de 5 mil anos antes do presente, formou-se uma imensa planície fluviomarinha. O bloco entre o rio Itapemirim e o rio Guaxindiba, estende-se até a costa, formando falésias ativas e inativas. O bloco de Quissamã foi afastado do mar por uma restinga.
O bloco de barreiras que interessa nesses apontamentos é aquele que se estende do rio Itapemirim (ES) ao rio Guaxindiba (RJ) e confina com o mar. Nele, existem nascentes que formam pequenos cursos d’água com foz no mar. Eles eram recobertos por densas florestas estacionais, um tipo de mata que perde de 20 a 50% na estação seca. Essas matas foram removidas e os riachos foram barrados em vários pontos. Poucos conservam foz no mar aberta permanentemente. Ou a redução de vazão permitiu que a força do mar as fechasse ou atividades humanas as vedaram.
Entre o rio Itabapoana, que foi definido como divisa entre o Espírito Santo e o Rio de Janeiro, estendem-se, nos tabuleiros, de norte para sul, os córregos Salgado e Doce, que foram barrados pelas atividades de mineração das Indústrias Nucleares do Brasil (INB) e se transformaram em lagoas alongadas. Ambos têm curta extensão. Logo abaixo, corre o ribeirão de Guriri, que ainda mantém a foz aberta com dificuldade. Em seguida, o ribeirão de Tatagiba, o maior de todos. Depois, o ribeirão de Buena, que considero o calcanhar-de aquiles para a atividade mineradora por fornecer a água necessária para a separação da terras raras procuradas pela INB. Mais abaixo, os córregos de Barrinha, que passa quase despercebido, e o de Manguinhos. Depois do rio Guaxindiba, os tabuleiros foram afastados do mar pela ponta norte da maior restinga do estado do Rio de Janeiro.
No caso do ribeirão de Tatagiba, conhecido como córrego Baixa do Arroz na nascente, o trabalho de lavra da INB tamponou sua foz. O rio se transformou numa lagoa alongada que ganhou volume. Nas chuvas mais intensas, passou a transbordar sobre lavouras, pastos, estradas e casas.
A solução para os transbordamentos encontrada pela prefeitura e pela comunidade de Tatagiba, junto a costa, foi abrir uma vala para escoar a agua excedente. A foz acabou substituída por essa vala, que parece ficar aberta durante o ano todo e onde existe uma atividade pesqueira amadorística. Embora a água flua na forma de um fio tênue, sementes (propágulos) de plantas exclusivas de mangue fixaram-se nessa nova foz com frequência e chegaram a germinar, formando mudas (plântulas). No entanto, o turismo praticado por pessoas de baixa renda no local não permitia que as plantas crescessem. Elas eram pisoteadas e morriam, tornando a reaparecer logo depois e tornar a morrer.
Certa vez, levei um estudioso de manguezal ao local e ele me disse que era perfeitamente normal plantinhas de mangue tentarem crescer num ambiente propício. Na desembocadura daquela vala formou-se um pequeno estuário, ou seja, um local em que a água doce do rio se encontra com a água salgada do mar e se torna salobra, ecossistema apreciado pelas plantas de mangue. Aquilo não era um manguezal segundo ele.
Mas sou historiador. Não estudo ciclagem de nutrientes nem produção primária de bosques de mangue. Estudo as relações de grupos humanos com a natureza. O que aconteceu no ribeirão de Tatagiba foi uma grande transformação negativa causada pelas atividades extrativistas, pela agropecuária, pela mineração, pelas estradas e pela urbanização. O mangue que devia existir na foz do Tatagiba desapareceu com seu aterramento. A foz foi fechada e o estuário desapareceu. A vala não foi criada pelas águas acumuladas do ribeirão, mas por ação humana. A formação de um novo estuário não visou o desenvolvimento de um novo manguezal, mas acabou contribuindo para que plantas exclusivas de mangue ali se fixassem e morressem por pisoteio.
Agora, entra em cena uma ação da natureza sem o mínimo propósito de favorecer a vida. A natureza não tem propósito. A poucos metros do mar, a vala de bifurcou: um braço continuou seguindo para o mar depois de uma curvatura. Outro braço continuou paralelo à praia até encontrar resistência da areia e formou uma espécie de remanso. Trata-se de um movimento novo. A vala não existia na década de 1980 e, quando a estudei, na década seguinte, o remanso não havia se formado. Só recentemente, talvez em 2018 ou 2019, o remanso abrigou sementes de espécies exclusivas de mangue trazidas pelas marés e de espécies oportunistas de restinga tolerantes à salinidade mais elevada.
Ao avistar o novo ambiente, reconheci logo que plantas de mangue poderiam estar crescendo no seu interior. Entrei nele encontrando a resistência que a lama de fundo oferece, assim com as plantas que arranham a pele. Logo encontrei plantas de mangue branco (Laguncularia racemosa) em estaturas diferentes e um belíssimo bosque de siribeira (Avicennia germinans). As árvores de siribeira crescem de forma esguia e elegante. Essa espécie ocorre entre a Flórida e o rio Macaé e difere daquela que ocorre do rio das Ostras até Santa Catarina, assim com difere de todas as outras que ocorrem em todo o mundo na zona intertropical. Mas todas as espécies dessa notável família emitem raízes respiratórias (pneumatóforos) do subsolo para o solo e expelem o excesso de sal pelas folhas. Além do mais, apresentam alta resistência à salinidade.
O mangue vermelho (Rhizophora mangle) não ocorre nesse pequeno manguezal por não tolerar salinidade elevada. Além dessas duas espécies de mangue, desenvolveram-se outras de restinga. A principal é o rabo-de-galo (Dalbergia ecastaphyllum). O local é invadido pelas marés altas, que contribuem para manter o ambiente em condições adequadas. O lixo também se acumula no remanso, empurrado pela água que desce pela vala e que sobe com as marés. Ninguém frequenta o local porque ele nada oferece para o pescador e para o turista. Corre-se o risco de afundar na lama, encontrar um caco de vidro no fundo, espetar-se na vegetação enfezada. Se a natureza tivesse consciência, poder-se-ia pensar numa certa astúcia de proteção. Mas o pequeno mangue está protegido pelo acaso. Poderia muito bem ser protegido pelo poder público municipal, já que o manguezal é um tipo de vegetação automaticamente protegido pelo Código Florestal de 2012 em toda a sua extensão. Bastaria isolar a área com tabuletas informativas, com a instalação de uma rede na entrada do remanso para reter o lixo e permitir que pesquisadores penetrassem na área para efetuar estudos.
Mas é sonhar alto, embora as medidas de proteção sejam simples e baratas. A prefeitura de São Francisco de Itabapoana não tem o mínimo interesse em proteger manguezais, assim como os cientistas verão nesse pequeno bosque uma área sem importância.